sexta-feira, 8 de junho de 2018

O tempo mítico e tempo social na sociedade africana


O homem africano é um ser histórico. E para quem estuda a história africana sabe que grandes obras vieram da capacidade criativa que nossos ancestrais deixaram para nós e usamos até os dias atuais. Tais criatividades estão bem visíveis aos nossos olhos. Para quem não estuda a história africana e tem pouco conhecimento sobre o que veio do continente-mãe é só olhar para as práticas agrárias, receitas de cozinha, medicamentos da farmacopeia, organizações políticas, produções artísticas, celebrações religiosas. Os africanos criaram seus próprios modos de ter uma sociedade, modos de pensamento e de vida. Sendo assim, criaram um modelo de sociedade.

O desenvolvimento de cada sociedade africana é concebido a partir da consciência histórica que os membros de cada sociedade têm de si. O que marca o singular desenvolvimento de cada sociedade em África é exatamente a concepção que os africanos têm de sua própria história. E eles dão valor aos saberes históricos para que suas sociedades sejam condicionadas estreitamente nesses saberes. Boubou Hama e J. Ki-Zerbo, no primeiro volume de História Geral da África, exemplificam essa consciência: "Assim, o rei dos Mossi (Alto Volta) intitulava-se Mogho-Naba, ou seja, rei do mundo, o que ilustra bem a influência das limitações técnicas e materiais sobre a visão que se tem das realidades sociopolíticas". Eles constatam, através deste exemplo, que o tempo africano é mítico e social às vezes, mas que os africanos sabem que são os responsáveis pela sua própria história. Até aqui percebemos que para nossos irmãos o tempo histórico é muito importante. Muitos de nós, africanos na diáspora e não africanos, que tivemos uma (des)educação ocidental, é um pouco difícil compreender o quão importante é o tempo histórico e o quanto ele influencia em nossas vidas atualmente.

Como já foi mencionado em outras conversas, para quem recebeu (des)educação ocidental a África é apenas um lugar mítico e ligado somente à natureza. Ledo engano. Ainda hoje há pessoas que imaginam que a África vive 'atrasada' enquanto o resto do mundo dispara em avanços históricos progredindo fervorosamente. O mito, de fato, é bastante presente no pensamento dos africanos com objetivo de desenrolar as histórias passadas da vida dos povos. Isso é levado tão a sério que pode influenciar nas escolhas e são baseados num modelo mítico que predetermina as ações das autoridades e do povo, é como um costume, faz parte do cotidiano das pessoas.

O tempo tradicional africano une a eternidade em todos os sentidos. O que hoje a (des)educação ocidental determina como moderno, para os africanos tradicionais é inválido porque para eles as gerações passadas são tão importantes quanto às atuais, uma se integra à outra, não existe a separação que a (des)educação ocidental nos ensina de que o antigo não serve para o contemporâneo. E essa integração faz com que os ensinamentos e costumes passados sejam bastantes influentes, se não mais importantes, de quando seus ancestrais viviam. A mecânica é a seguinte: o passado influencia o presente e o presente influencia o futuro. Se formos conversar com irmãos do continente que seguem suas tradições e formos fazer a eles alguma proposta, pode ser bem comum que eles nos respondam que antes de tomarem qualquer decisão vão consultar seus ancestrais. Nós, da diáspora, fomos literalmente roubados da nossa cultura sem qualquer sombra de dúvidas.
Os sonhos também são meios de tomar decisões muito significativas para os africanos. Antigamente, existiam funcionários das cortes que eram intérpretes de sonhos; eles tinham um peso considerável sobre a ação política, eram chamados de ministros do futuro. "No fim do século XVII, por exemplo, o rei ruandês Mazimpaka Yuhi III sonhou com homens de tez clara vindos do leste. Armou-se então de arcos e flechas, mas antes de lançar as flechas contra eles, guarneceu-as com bananas maduras. A interpretação desta atitude ambígua, ao mesmo tempo agressiva e acolhedora, introduziu uma imagem privilegiada na consciência coletiva dos ruandeses e talvez contribua para explicar a atitude pouco combativa desse povo, tradicionalmente aguerrido, face às colunas alemãs do século XIX, semelhantes aos pálidos rostos avistados durante o sonho real dois séculos antes." (Hama & Ki-Zerbo, História Geral da África, volume I).

Podemos ter três exemplos de como o tempo mítico pode tranquilamente ser favorável ao contemporâneo. Além disso, os acontecimentos podem ser obtidos ao grupo e não apenas a um indivíduo: (1) Lenda Gikuyu - essa lenda explica a chegada da técnica de fundição do ferro, um benefício para todos até os dias atuais. Segundo a lenda, Mogai (Deus) distribuiu os animais entre os homens e as mulheres. Mas as mulheres foram bastante cruéis com eles fazendo com que eles se tornassem selvagens. Os homens intercederam junto a Mogai em favor das mulheres dizendo que em honra a Mogai iam sacrificar um carneiro, mas este ato não ocorreria com faca de madeira para não repetirem os riscos das suas mulheres. Essa atitude foi considerada de grande sabedoria por Mogai e por isso ele ensinou os homens a receita da fundição do ferro. (2) O rei Shilluk era um depositário mortal que possuía poder imortal, já que totalizava em si o próprio tempo mítico (Ele encarnou o herói fundador) e o tempo social considerado como fonte de vitalidade do grupo. (3) Assim como com o rei Shilluk, entre os Bafulero (Zaire oriental), os Bunyoro (Uganda) e os Mossi (Alto Volta), o chefe é base de sustentação do povo, do coletivo. O Mwami está presente: o povo vive. O Mwami está ausente: o povo morre. A ausência do rei em decorrência de morte influencia fortemente o dia a dia do seu povo. É como se o tempo parasse as atividades, a ordem social, qualquer expressão de vida (riso, agricultura e até mesmo a união sexual dos animais e das pessoas). Percebe-se, portanto, que o rei não está ali somente para governar como estamos acostumados a ver nas sociedades ocidentais, ele também é fundamental para a questão espiritual do povo que está sob sua responsabilidade. Até que chegue um novo rei para substituí-lo, tudo fica estático. Tudo é onipresente nesse tempo intemporal do pensamento animista, no qual a parte representa e pode significar o todo. Por exemplo, os cabelos e unhas que se impedem de cair nas mãos dos inimigos por medo de que estes tenham poder sobre a pessoa. Ou seja, esses elementos (cabelos e unhas) podem ser fortemente usados pelo inimigo dessa pessoa que os deixou cair porque tem a essência dessa pessoa nos elementos.

Não é tão fácil compreender o significado de tempo para os africanos tradicionais. Veja o trecho a seguir que deixo na íntegra retirado do primeiro volume da coleção História Geral da África, página 27 em PDF e página 83 do arquivo. "De fato, é preciso atingir uma concepção geral do mundo para entender a visão e o significado profundo do tempo entre os africanos. Veremos então que no pensamento tradicional, o tempo perceptível pelos sentidos não passa de um aspecto de um outro tempo vivido por outras dimensões da pessoa. Quando vem a noite e o homem se estende sobre sua esteira ou sua cama para dormir, é o momento que seu duplo escolhe para partir, para percorrer o caminho seguido pelo homem durante o dia, frequentar os lugares que ele frequentou e refazer os gestos e os trabalhos que ele realizou conscientemente durante a vida diurna. É no curso dessas peregrinações que o duplo se choca com as forças do Bem e do Mal, com os bons gênios e com os feiticeiros devoradores de duplos ou cerko (em língua songhai e zarma). É no duplo que reside a personalidade de cada um. O songhai diz que o bya (duplo) de um homem é pesado ou leve, querendo significar que sua personalidade é forte ou frágil: os amuletos têm como finalidade proteger e reforçar o duplo. E o ideal é chegar a confundir‑se com o próprio duplo, a fundir‑se nele até formar uma só entidade, que ascende assim a um grau de sabedoria e de força sobre‑humano. Somente o grande iniciado, o mestre (kortekonynu, zimaa) atinge esse estado em que o tempo e o espaço não constituem mais obstáculos. Era esse o caso de SI, o ancestral epônimo da dinastia: “Assustador é o pai dos SI, o pai dos trovões. Quando ele está com uma cárie, é então que mastiga cascalhos; quando está com conjuntivite, é nesse momento que, resplandecente, acende o fogo. Com seus grandes passos, ele percorre a terra. Ele está em toda parte e em parte alguma”.

Vimos que o tempo mítico e tempo social é fortemente vivo na vida dos nossos irmãos que segue a tradicional forma de vida africana. Mas, leitor, tenha cuidado para não pensar que os africanos só vivem do tempo mítico para justificar o social, pois se assim fosse o mito seria um condutor de uma história imóvel, que ficaria sempre na mesmice. E isso não é verdade. Em nossa próxima conversa, vamos conversar um pouco mais sobre isso de forma que não fique em sua mente que o pensamento africano se baseia apenas no que é mítico.



Fonte: História Geral da África, volume 1 – Capítulo 2 – Autores: Boubou Hama e J. Ki-Zerbo.

Nota: todos os textos deste blog são baseados em fontes dedicadas ao tema. A intenção do Coração Africano é apenas compartilhar o aprendizado que adquiri no dia a dia. O Blog não serve como fonte de pesquisa. Por isso, sempre terá a fonte de onde as informações foram extraídas.


quinta-feira, 7 de junho de 2018

Exposição Ex-África CCBB

O Centro Cultural Banco do Brasil está com uma exposição maravilhosa sobre África. A exposição se chama Ex-África. É uma parceria junto ao Ministério da Cultura que visa a mostrar a arte africana contemporânea aqui no Brasil.
A exposição traz um panorama da produção artística da África atual e seu impacto no mundo. São mais de 80 obras compostas por fotografias, pintuas, esculturas, performances e vídeos. É importante todos os afrodescendentes visitarem a exposição para termos em mente o quanto o continente-mãe tem de contribuição na formação da identidade brasileira.
O vídeo abaixo é um dos que está na sala dedicada aos sons do oeste africano. Som gostoso demais.


Pude tirar algumas fotos, sem flash, mas não vou deixá-las aqui para que se sintam instigados a fazer uma visitinha na exposição. Vale muito a pena. Ela vai até dia 16 de julho, de quarta a segunda. Tem como fazer visita guiada. Clique aqui para mais informações.