O homem africano é um ser
histórico. E para quem estuda a história africana sabe que grandes obras vieram
da capacidade criativa que nossos ancestrais deixaram para nós e usamos até os
dias atuais. Tais criatividades estão bem visíveis aos nossos olhos. Para quem
não estuda a história africana e tem pouco conhecimento sobre o que veio do
continente-mãe é só olhar para as práticas agrárias, receitas de cozinha,
medicamentos da farmacopeia, organizações políticas, produções artísticas,
celebrações religiosas. Os africanos criaram seus próprios modos de ter uma
sociedade, modos de pensamento e de vida. Sendo assim, criaram um modelo de
sociedade.
O desenvolvimento de cada
sociedade africana é concebido a partir da consciência histórica que os membros
de cada sociedade têm de si. O que marca o singular desenvolvimento de cada
sociedade em África é exatamente a concepção que os africanos têm de sua
própria história. E eles dão valor aos saberes históricos para que suas
sociedades sejam condicionadas estreitamente nesses saberes. Boubou Hama e J.
Ki-Zerbo, no primeiro volume de História Geral da África, exemplificam essa
consciência: "Assim, o rei dos Mossi (Alto Volta) intitulava-se Mogho-Naba,
ou seja, rei do mundo, o que ilustra bem a influência das limitações técnicas e
materiais sobre a visão que se tem das realidades sociopolíticas". Eles
constatam, através deste exemplo, que o tempo africano é mítico e social às
vezes, mas que os africanos sabem que são os responsáveis pela sua própria
história. Até aqui percebemos que para nossos irmãos o tempo histórico é muito
importante. Muitos de nós, africanos na diáspora e não africanos, que tivemos
uma (des)educação ocidental, é um pouco difícil compreender o quão importante é
o tempo histórico e o quanto ele influencia em nossas vidas atualmente.
Como já foi mencionado em outras conversas,
para quem recebeu (des)educação ocidental a África é apenas um lugar mítico e
ligado somente à natureza. Ledo engano. Ainda hoje há pessoas que imaginam que
a África vive 'atrasada' enquanto o resto do mundo dispara em avanços
históricos progredindo fervorosamente. O mito, de fato, é bastante presente no
pensamento dos africanos com objetivo de desenrolar as histórias passadas da
vida dos povos. Isso é levado tão a sério que pode influenciar nas escolhas e são
baseados num modelo mítico que predetermina as ações das autoridades e do povo,
é como um costume, faz parte do cotidiano das pessoas.
O tempo tradicional africano une a eternidade
em todos os sentidos. O que hoje a (des)educação ocidental determina como
moderno, para os africanos tradicionais é inválido porque para eles as gerações
passadas são tão importantes quanto às atuais, uma se integra à outra, não
existe a separação que a (des)educação ocidental nos ensina de que o antigo não
serve para o contemporâneo. E essa integração faz com que os ensinamentos e
costumes passados sejam bastantes influentes, se não mais importantes, de
quando seus ancestrais viviam. A mecânica é a seguinte: o passado influencia o
presente e o presente influencia o futuro. Se formos conversar com irmãos do
continente que seguem suas tradições e formos fazer a eles alguma proposta,
pode ser bem comum que eles nos respondam que antes de tomarem qualquer decisão
vão consultar seus ancestrais. Nós, da diáspora, fomos literalmente roubados da
nossa cultura sem qualquer sombra de dúvidas.
Os sonhos também são meios de tomar decisões
muito significativas para os africanos. Antigamente, existiam funcionários das
cortes que eram intérpretes de sonhos; eles tinham um peso considerável sobre a
ação política, eram chamados de ministros do futuro. "No fim do século XVII,
por exemplo, o rei ruandês Mazimpaka Yuhi III sonhou com homens de tez clara
vindos do leste. Armou-se então de arcos e flechas, mas antes de lançar as
flechas contra eles, guarneceu-as com bananas maduras. A interpretação desta
atitude ambígua, ao mesmo tempo agressiva e acolhedora, introduziu uma imagem
privilegiada na consciência coletiva dos ruandeses e talvez contribua para
explicar a atitude pouco combativa desse povo, tradicionalmente aguerrido, face
às colunas alemãs do século XIX, semelhantes aos pálidos rostos avistados
durante o sonho real dois séculos antes." (Hama & Ki-Zerbo, História
Geral da África, volume I).
Podemos ter três exemplos
de como o tempo mítico pode tranquilamente ser favorável ao contemporâneo. Além
disso, os acontecimentos podem ser obtidos ao grupo e não apenas a um
indivíduo: (1) Lenda Gikuyu - essa lenda explica a chegada da técnica de
fundição do ferro, um benefício para todos até os dias atuais. Segundo a lenda,
Mogai (Deus) distribuiu os animais entre os homens e as mulheres. Mas as
mulheres foram bastante cruéis com eles fazendo com que eles se tornassem
selvagens. Os homens intercederam junto a Mogai em favor das mulheres dizendo
que em honra a Mogai iam sacrificar um carneiro, mas este ato não ocorreria com
faca de madeira para não repetirem os riscos das suas mulheres. Essa atitude
foi considerada de grande sabedoria por Mogai e por isso ele ensinou os homens
a receita da fundição do ferro. (2) O rei Shilluk era um depositário mortal que
possuía poder imortal, já que totalizava em si o próprio tempo mítico (Ele
encarnou o herói fundador) e o tempo social considerado como fonte de
vitalidade do grupo. (3) Assim como com o rei Shilluk, entre os Bafulero (Zaire
oriental), os Bunyoro (Uganda) e os Mossi (Alto Volta), o chefe é base de
sustentação do povo, do coletivo. O Mwami está presente: o povo vive. O Mwami
está ausente: o povo morre. A ausência do rei em decorrência de morte
influencia fortemente o dia a dia do seu povo. É como se o tempo parasse as
atividades, a ordem social, qualquer expressão de vida (riso, agricultura e até
mesmo a união sexual dos animais e das pessoas). Percebe-se, portanto, que o rei
não está ali somente para governar como estamos acostumados a ver nas
sociedades ocidentais, ele também é fundamental para a questão espiritual do
povo que está sob sua responsabilidade. Até que chegue um novo rei para
substituí-lo, tudo fica estático. Tudo é onipresente nesse tempo intemporal do
pensamento animista, no qual a parte representa e pode significar o todo. Por
exemplo, os cabelos e unhas que se impedem de cair nas mãos dos inimigos por
medo de que estes tenham poder sobre a pessoa. Ou seja, esses elementos
(cabelos e unhas) podem ser fortemente usados pelo inimigo dessa pessoa que os
deixou cair porque tem a essência dessa pessoa nos elementos.
Não é tão fácil compreender
o significado de tempo para os africanos tradicionais. Veja o trecho a seguir que
deixo na íntegra retirado do primeiro volume da coleção História Geral da
África, página 27 em PDF e página 83 do arquivo. "De fato, é preciso
atingir uma concepção geral do mundo para entender a visão e o significado
profundo do tempo entre os africanos. Veremos então que no pensamento
tradicional, o tempo perceptível pelos sentidos não passa de um aspecto de um
outro tempo vivido por outras dimensões da pessoa. Quando vem a noite e o homem
se estende sobre sua esteira ou sua cama para dormir, é o momento que seu duplo
escolhe para partir, para percorrer o caminho seguido pelo homem durante o dia,
frequentar os lugares que ele frequentou e refazer os gestos e os trabalhos que
ele realizou conscientemente durante a vida diurna. É no curso dessas
peregrinações que o duplo se choca com as forças do Bem e do Mal, com os bons
gênios e com os feiticeiros devoradores de duplos ou cerko (em língua
songhai e zarma). É no duplo que reside a personalidade de cada um. O songhai
diz que o bya (duplo) de um homem é pesado ou leve, querendo significar
que sua personalidade é forte ou frágil: os amuletos têm como finalidade
proteger e reforçar o duplo. E o ideal é chegar a confundir‑se com o próprio
duplo, a fundir‑se nele até formar uma só entidade, que ascende assim a um grau
de sabedoria e de força sobre‑humano. Somente o grande iniciado, o mestre (kortekonynu,
zimaa) atinge esse estado em que o tempo e o espaço não constituem mais
obstáculos. Era esse o caso de SI, o ancestral epônimo da dinastia: “Assustador
é o pai dos SI, o pai dos trovões. Quando ele está com uma cárie, é então que
mastiga cascalhos; quando está com conjuntivite, é nesse momento que,
resplandecente, acende o fogo. Com seus grandes passos, ele percorre a terra.
Ele está em toda parte e em parte alguma”.
Vimos que o tempo mítico e
tempo social é fortemente vivo na vida dos nossos irmãos que segue a
tradicional forma de vida africana. Mas, leitor, tenha cuidado para não pensar
que os africanos só vivem do tempo mítico para justificar o social, pois se
assim fosse o mito seria um condutor de uma história imóvel, que ficaria sempre
na mesmice. E isso não é verdade. Em nossa próxima conversa, vamos conversar um
pouco mais sobre isso de forma que não fique em sua mente que o pensamento
africano se baseia apenas no que é mítico.
Fonte: História Geral da África, volume 1 – Capítulo 2 –
Autores: Boubou Hama e J. Ki-Zerbo.
Nota: todos os textos deste blog são baseados em fontes
dedicadas ao tema. A intenção do Coração Africano é apenas compartilhar o
aprendizado que adquiri no dia a dia. O Blog não serve como fonte de pesquisa.
Por isso, sempre terá a fonte de onde as informações foram extraídas.